sexta-feira, 11 de julho de 2014

Tokiopia

Abertura do filme "Enter the Void" de Gaspar Noé

         Não sei como vim parar aqui, neste quarto de hotel obscuro, essa cama que não me conforta, travesseiro austero, lençóis estranhos, definitivamente não é o quarto, onde o meu corpo adormecera na noite passada. O pânico que me consome só não é mais intenso que a minha inerente curiosidade investigativa. 

      Ao meu redor, há uma quantidade incalculável de luzes caleidoscópicas que esmorecem minhas lembranças, tal como um labirinto de cores vertiginoso.

    “Respira, pensa”, são as palavras que incessantemente eu repito a mim mesmo. “Já sei”. A rompante, atiro-me da cama e inicio uma busca ávida pelo meu celular, mas foi uma procura desesperada e sem sucesso. 

      Certamente estou muito longe de casa, longe de qualquer familiaridade com os lugares que eu conhecia, é tudo diferente e intimidador. 

    Todo esse caos de luzes que pela janela enxergo e que, inicialmente, provocava-me uma vertigem tortuosa, agora surge sedutor, pois a nitidez da minha visão tinha voltado e eu podia vislumbrar aquele cenário ímpar. Aproximo-me da janela e começo a enxergar beleza naquele dinamismo multicromático, quantos prédios e painéis surreais. “Onde estou afinal?” 

    Resolvo descer do topo das minhas convicções, por entre os corredores gélidos, os degraus intermináveis e o vazio do hotel para explorar as ruas daquela cidade disforme, a cada passo dado maior é o desconhecimento, porém eu não me importo, já havia sido capturado pelo mosaico vibrante e anárquico de cores. 

      E, sem rumo, eu ando sobre o meu sonho psicodélico como uma criança perdida em um parque de diversões. “Será que estou delirando? Será que estou drogado? É tudo uma mórbida ilusão?” 

      Essas questões, que me causam certo desconforto, logo foram sendo diluídas à medida que eu ia me deparando com novas formas de brilhos, faíscas e lampejos espetaculosos. É a febre da modernidade dominando o meu corpo atônito e paralisando os meus olhos. 

      E, de fundo, uma música do Daft Punk me guia rumo ao acaso, eu posso sentir a fusão do momento e, ao fechar meus olhos, eu digo adeus ao meu subjetivismo e fluo como as ondas daquele som extasiante ou os rastros de luzes que se encontram e se desencontram incessantemente. 

    Ao me aproximar do centro das profusões sonoras, constato que há uma multidão dançando hipnoticamente, é uma euforia generalizada de humanoides, e eu estou absorto pelo som efusivo e pelos hologramas do palco monumental, nunca havia visto nada similar, parece o futuro diante das minhas pálpebras, talvez eu tenha atravessado as barreiras temporais e chego a um futuro remoto. 

      Todos esses lapsos de reflexões são realizados por mim enquanto eu estou em movimento, vagueando pela avenida, depois por uma rua sem vida, cujos homéricos edifícios cobrem a lua e as estrelas. Parece dia, dada a quantidade imensurável de luzes que povoam o firmamento. 

      No meu cerne, eu desconfio que todo aquele frenesi é uma criação onírica da minha mente e, se realmente fosse, acordar seria a última das minhas vontades. Eu quero esmiuçar este panorama, perambular sem ponteiros ou compromissos, apenas eu, a liberdade e a sombra da minha insensatez. 

    Sem documentos, sem qualquer sinal de dinheiro, sem roupas de grife, sem carro e sem nenhuma vontade de ter alguma dessas coisas. Nem a fome, sede, exaustão, medo e insegurança podem me deter, e eu ando por ruas, vielas, calçadas que eu nunca tinha visto e, ocasionalmente, outras sombras cruzam o meu caminho, provocando-me certo desconforto, são vultos estranhos que parecem procurar por algo, faces desconexas na solidão. “Será que estavam tão perdidos e hipnotizados como eu?” 

    Ressabiado com a possibilidade de ser abordado por uma dessas criaturas desfiguradas, adentro sorrateiramente às instalações de uma fábrica iluminada e repleta de paredes esverdeadas. Tanto metal em movimento, faíscas, estrondos, pilares colossais, percursos sinuosos e, repentinamente, lá, no lugar mais improvável de todas as utopias, eu a encontro, estupenda, mais reluzente do que nunca, uma visão dourada das minhas lágrimas, uma versão da minha vida em outro ser, eu sei que dessa vez eu não vou morrer na omissão, eu vou dizer tudo o que ficou engasgado na poeira. 

      Encostada em um dos pilares, ela ainda não havia percebido minha presença, até que finjo andar despreocupado e cruzo a frente dela despretensiosamente, nesse exato momento seu sorriso me reconhece, seus olhos se enternecem e as palavras que eu mais almejo ouvir no mundo são pronunciadas pelos seus lábios sedutores: “Agora podemos ficar juntos.” E, como mágica, dois lábios longínquos se tornam um só repleto de esperança. Aquele beijo exalou vida reprimida, ignorou o desejo do tempo e eternizou aquele lépido instante, no qual as máquinas silenciaram e as fagulhas pararam no ar. 

      Não posso acordar, não quero acordar, estou tão ao alcance do sublime, do paraíso cibernético que tantas vezes imaginei sob os cacos da minha realidade. As ficções científicas de todos os tempos se reuniram para conceder essa obra de arte oculta no meu coração, deixe-me aqui por mais um século, por mais um segundo, por misericórdia.


Cena do filme "Enter the Void" de Gaspar Noé


Vitor Costa

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