quinta-feira, 19 de junho de 2014

O Show de Truman - O Show da Vida (Truman Show, The, 1998)

Antes de iniciar essa resenha, gostaria de dizer que estou inaugurando uma nova categoria de textos no blog, voltada a uma análise crítica de filmes diversos. Não sou nenhum crítico profissional, sou apenas um cinéfilo que deseja compartilhar suas impressões e considerações acerca de obras cinematográficas. Espero que apreciem de alguma forma.


Alerta de Spoilers!!

 Em 1998 Jim Carrey já havia se consolidado como um comediante de sucesso e comprovado seu talento para o humor em filmes como “Debi e Lóide” e “O Mentiroso”. Porém, o ator decidiu se enveredar por um ramo até então desconhecido para ele, um drama que seria dirigido pelo renomado diretor Peter Weir, conhecido por realizar obras com um elevado teor reflexivo, como “A Sociedade dos Poetas Mortos” e que se basearia em um roteiro original elaborado por Andrew Niccol, o realizador da perspicaz ficção-científica “Gattaca”.
 Felizmente, a aposta se revelou um enorme acerto para todos os envolvidos no projeto, “O Show de Truman” foi um dos melhores e mais originais filmes daquele ano e, ouso a dizer, da década de 90.

A premissa do roteiro de Niccol é brilhante, trata-se da vida de Truman Burbank, um cidadão de classe média, absolutamente comum e pacato, mas que, na verdade, é o astro de um reality show que consiste em mostrar a sua vida desde o seu nascimento sem que ele perceba e que é transmitido ininterruptamente para o mundo inteiro. Para tanto, foi necessário construir uma estrutura colossal, similar a uma semiesfera que encobrisse todo o cenário e simulasse as condições climáticas de uma cidade litorânea. Da mesma forma, contou-se com um vasto elenco que interpretasse desde meros figurantes até pessoas importantes na vida de Truman como seu melhor amigo, sua esposa e seus pais. Tudo para tornar aquele mundo factível e insuspeito para ele.
Um aspecto interessante a ser notado é a entrega passional e, ao mesmo tempo, doentia de todos da equipe do programa, especialmente de seu criador Christof (interpretado de modo brilhante por Ed Harris), em manter Truman preso naquela “redoma”. Desde fatos marcantes como o ilusório afogamento do “pai” dele, o que lhe provocou trauma do mar, até ínfimos detalhes como um cartaz, presente em uma agência de viagens, alertando sobre os perigos de viajar de avião, tudo é minuciosamente elaborado e manipulado para definir os rumos da vida de Truman de acordo com a vontade de Christof.

"Isso poderia acontecer com você!"

 Um dos grandes destaques do filme se refere às interpretações, Laura Linney oferece uma performance involuntariamente cômica para compor uma Meryl Burbank intencionalmente exagerada, dona de um sorriso nervoso e mais preocupada com o merchandagem dos produtos do programa do que com a sua atuação, é por meio desta personagem que o roteiro de Niccol evidencia sua crítica ao consumismo fútil e desenfreado disseminado pelas mídias. Em relação à Christof, ele é uma espécie de “Deus” daquele mundo que, de dentro da imensa lua cenográfica, observa e orienta seus comandados, e a atuação impecável de Ed Harris é fundamental para que possamos compreender a obsessão e a pretensão do sujeito em realizar a obra de sua vida sem torná-lo repulsivo, apesar de suas atitudes, no mínimo, questionáveis. Christof é como um pai rígido que não enxerga crueldade nas suas ações, ele acredita avidamente que está fazendo o melhor para o seu “filho” (Truman), protegendo-o dos perigos do mundo real e é reveladora a cena, na qual Christof observa e acaricia ternamente a imagem de Truman transmitida por uma imensa tela.  

"Pai" e "Filho"

 Entretanto, o filme e nem o programa dentro do filme teriam o mesmo êxito caso possuíssem um protagonista antipático, sem carisma e unidimensional, por isso o ator que interpretasse Truman, além de carismático, precisava passar toda a densidade emocional do personagem e a escolha de Carrey para essa tarefa foi um tanto arriscada, pois, apesar de sua simpatia intrínseca, ele ainda não havia demonstrado sua vertente dramática, porém, Carrey cumpriu a tarefa de modo louvável, abraçando a discrição e evitando a caricaturização para compor o personagem. Não só ele conferiu o carisma necessário a Truman, como também soube demonstrar de modo convincente todas as emoções dele, desde a paranoia inicial até o anseio por liberdade. Destaco dois momentos comoventes no filme, nos quais a interpretação de Carrey alcança patamares elevados, o primeiro é o reencontro com o “pai” de Truman, cena, aliás, que é maravilhosamente “orquestrada” por Christof; e principalmente, a cena na qual Truman finalmente percebe o limite da sua “prisão”, esse momento é de uma emoção e beleza sublimes.

Há de se ressaltar também o grande trabalho de Peter Weir na direção, especialmente no formidável jogo de câmeras que ele proporciona quando transita dos enquadramentos convencionais para aqueles que representam o ponto de vista do público do programa, mostrados pelas câmeras escondidas presentes no cenário, e o ponto de vista de determinados personagens, como na cena em que Truman intimida Meryl na cozinha de sua casa. Ele realiza essa alternância de forma orgânica e inusitada.
A direção de arte transforma “SeaHeaven” (nome dado a ilha, na qual o cenário se localiza) em um lugar um tanto anacrônico, similar a uma típica cidade norte-americana da década de 40 ou 50 com suas casas uniformes e vestimentas características, mas, no qual os veículos e alguns aparelhos são mais modernos. É um contraste que soa interessante e acrescenta originalidade à obra.
Enfim, o “Show de Truman” é uma obra que possui uma rica gama de interpretações e reflexões, por isso tratá-la como apenas uma crítica à influência midiática nas nossas vidas é ofuscar o seu potencial como contestação da nossa realidade, do comodismo, da prisão invisível a que, imperceptivelmente, nos submetemos por conveniência e medo do desconhecido. É, indubitavelmente, uma análise criativa e incomum sobre a verdadeira liberdade de uma pessoa resignada, como a grande maioria de nós, a única diferença é que a "redoma" a qual Truman se liberta é literal.

"Caso eu não os veja, bom dia, boa tarde e boa noite."

 Falar de injustiças no Oscar é pleonasmo, mas é, no mínimo, incompreensível a ausência do filme na categoria de melhor filme em 1999, bem como a ilógica ausência de Jim Carrey na categoria de melhor ator, sendo que o mesmo venceu o Globo de Ouro por melhor ator em drama pelo seu preciso desempenho no filme. Essa indiferença se torna ainda mais grave, ao lembrar que a Academia premiou o somente mediano "Shakespeare Apaixonado" como melhor filme daquele ano, certamente "O Show de Truman" merecia melhor sorte. Ao menos, o roteiro genial de Andrew Niccol foi premiado.

Vitor Costa

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